
O Cinema, Uma Arte Sonora
Virginia Flôres 2013
Apresentação
Até o final dos anos 70, não havia no Brasil especialistas em fazer com que as idéias estéticas e narrativas dos diretores de cinema se transformassem em matéria sonora. Roteiristas cumpriam essa função na escrita; diretores de fotografia e diretores de arte criavam imagens, formas, cores e texturas que refletiam os conceitos e montadores organivazam o material filmado dando-lhe ritmo e finalizando a estrutura criada no roteiro. Já o som tinha apenas profissionais especializados em duas etapas da produção: a captação (técnico de som direto) e a mixagem (mixador). Porém a edição de som, etapa que como bem coloca Virginia Flôres implica na escolha e sincronização de sons cuja materialidade e singularidade refletem as possibilidades imagéticas por ele suscitadas mentalmente e onde “se pode incrementar o espaço diegético dos filmes, o espaço da ação narrada e tornar uma ação mais crível, mais poética, mais expressiva ou mais significativa, dependendo do enfoque estético buscado” não era pensada por alguém cuja formação musical, auditiva, narrativa e estética estivesse focada nessa área. A concepção e realização do universo sonoro do filme muitas vezes era feita pelo próprio montador da imagem, por um técnico do estúdio de finalização de áudio ou mesmo pelos seus assistentes de montagem. Se o montador possuía as qualidades para a compreensão narrativa e estética das obras, faltava-lhe o domínio tecnológico do áudio, enquanto o técnico de estúdio possuía as qualidades inversas. Virginia Flôres foi uma das pioneiras no país a reunir todos os atributos necessários e se qualificar como editora de som, com aperfeiçoamento na “National Film Board” do Canadá. Durante sua longa e ainda ativa carreira, foi responsável por títulos como Baile Perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira; Ele, o Boto, de Walter Lima Junior; Santo Forte, de Eduardo Coutinho e Separações, de Domingos de Oliveira, entre os mais de 40 longas-metragem nos quais é responsável por ampliar as capacidades expressivas pelo som. É de se destacar que o editor de som nos anos 80 tinha o mesmo papel que hoje se atribui ao “sound designer”, ou seja, ser o responsável pelo pensamento sonoro da obra, dando-lhe unidade e forma coerentes com as propostas fílmicas e expandindo suas possibilidades audiovisuais. Seu talento não se resume aí. Virgina também atua como montadora em filmes como Dias de Nietzsche em Turim e Filme de Amor, de Julio Bressane; Bela Donna, de Fábio Barreto e Pequeno Dicionário Amoroso, de Sandra Werneck. Há mais de dez anos, atua também como professora no ensino superior do audiovisual. E foi sua volta à academia que gerou uma nova inquietação que, resolvida inicialmente como uma dissertação de mestrado, e agora revista como livro mostrando, mais uma vez, seu pioneirismo. O Cinema: uma arte sonora apresenta conceitos fundamentais para quem quer entender melhor a escuta e a relação audiovisual nos filmes. Logo no começo do seu texto, Virginia Flôres nos lembra que é o som que nos faz interpretar uma imagem. É ele que nos dirá se o que vemos deve ser lido de forma verossimilhante ou como uma alegoria, se nosso olhar deve ser natural ou de estranhamento e se pergunta, como me pergunto também muitas vezes, como alguém é capaz de analisar uma imagem em um filme independente do som que a define. Durante seu texto, os leitores serão apresentados às ideias de vários teóricos ainda inéditos no país mas que há muito refletem sobre o escutar e ver no cinema, como Michel Chion, Rick Altman, John Belton, Gilles Mouëllic e Véronique Campan. Autores já mais conhecidos dos brasileiros terão uma nova luz sobre suas escritas, tais como Cristian Metz, Gilles Deleuze, Roland Barthes e Ismail Xavier. No mesmo caminho, Virgina Flôres procura revelar ao seu leitor diferentes padrões de uso do som (conforme seu fluxo sonoro, como símbolo, como pontuação, como retórica) e desvendar como cada um dos elementos formadores da trilha sonora atua na construção narrativa cinematográfica. E como se não bastasse trazer à baila as todas essas questões relativas à imagem/som, a autora ainda faz uma investigação original e fértil sobre a escuta, relacionando construção da música eletroacústica e a edição de som. Para tanto, se apropria das ideias de Pierre Schaeffer e de Michel Chion sobre objetos musicais e objetos sonoros propondo um novo modelo de análise da escuta cinematográfica. Dona de um texto fluente, Virginia Flôres leva para o livro seu didatismo, fazendo com que as reflexões e os conceitos apresentados sejam sempre acompanhados de exemplos fílmicos que enriquecem e esclarecem a leitura. O Cinema: uma arte sonora traz um novo parâmetro nas publicações sobre os estudos de som no Brasil. Pela primeira vez, há uma obra em português que apresenta autores clássicos e modernos desta área dos estudos de cinema e inicia uma sólida discussão sobre a função da trilha sonora cinematográfica a partir de seus usos e elementos estruturantes. Uma obra que deve ser imediatamente adotada não só pelas disciplinas de ensino de som mas, também, pelas de teoria e crítica para reformular o pensamento audiovisual que hoje domina a cultura cinematográfica no nosso país.
Eduardo Santos Mendes